segunda-feira, 25 de junho de 2007

O Sábio Ignorante do Japão


" O conteúdo histórico do nome “gutoku Shinran”, revela muito do seu significado. Shinran foi um dos principais discípulos de Honen, fundador da Escola da Terra Pura. Ele estudou com Honen em Kyoto por um período de cinco a seis anos, até a perseguição da linhagem da Terra Pura em 1207, quando foi exilado para a remota província de Echigo. Foi durante este período que começou a usar o nome “gutoku Shinran”, indicando que foi lá na costa marítima de Echigo, não em Kyoto, que ele mergulhou pela primeira vez na sua verdadeira natureza.
Ele considerava-se, “nem monge nem leigo”, pois devido ao banimento, foi privado pelo governo de sua dignidade sacerdotal e ao mesmo tempo não tinha meios de viver como um leigo comum. O despertar encontrado dentro do seu verdadeiro eu, surgiu nessas circunstâncias. Não era uma questão limitada, individual. Através desse despertar, Shinran adquiriu um profundo entendimento do mundo real, o mundo do qual ele fazia parte e no qual as pessoas vivem, interagem e se esforçam para sobreviver. Esse entendimento está cristalizado no seu nome.
O entendimento de Shinran acerca deste concreto mundo, do dia-a-dia, está expresso na seguinte passagem do Tannisho, que descreve as pessoas entre as quais ele vivia:



Aqueles que ganham a vida jogando redes no oceano ou pescando nos rios.Aqueles que sustentam-se matando javalis e pegando pássaros nas terras áridas e nas montanhas .Aqueles que passam suas vidas ocupados no trabalho ou cultivando a terra.

Os quatro tipos de pessoas aqui citadas são os pescadores, caçadores, mercadores e lavradores, na verdade pessoas oprimidas vivendo suas existências como escravos, trabalhando o solo. Todas estas pessoas eram tidas em baixa estima por aqueles situados em posições mais privilegiadas. Sobre suas pobres e sofridas existências, Shinran entendeu que : “Se tais foram as nossas condições cármicas, nada há que possamos fazer”. Nesta parte do Tannisho, Shinran está discutindo a igualdade de todos os homens. Por que ele escolhe mencionar esse povo da mais baixa camada social, para discutir tal assunto? Penso que a resposta a esta pergunta, está indiretamente embutida na sua escolha pelo nome “gutoku Shinran”.
As pessoas sempre falam acerca da igualdade, debatendo os seus vários aspectos. O que é mais importante põem, é onde essas pessoas se colocam quando discutem este problema – para a igualdade significar alguma coisa, ela deve ser examinada de uma posição definitivamente transparente. Shinran não diz simplesmente que todos os homens são iguais; uma abstração tão vaga assim é sem sentido. A igualdade da qual Shinran falou, foi a palpável e sensível igualdade que ele descobriu na vida que teve entre pescadores, caçadores, mercadores e lavradores.

Além disso, algo mais forte e mais positivo do que uma simples simpatia por essas pessoas oprimidas está por trás da afirmação de Shinran. Vivendo no meio de pessoas da mais baixa camada social, Shinran foi estimulado a reavaliar criticamente os valores do Budismo tradicional, ou seja, o Budismo anterior ao Mestre Honen.
O Budismo tradicional nos diz que nascemos como seres humanos, por termos obedecido aos preceitos budistas em nossas vidas anteriores e assim deveríamos continuar vivendo estes preceitos igualmente nesta vida. Os preceitos budistas: não matar, não roubar, não cometer adultério, não mentir e não usar tóxicos – é claro, são extremamente importantes.
Porém, o que Shinran percebeu na sua vida entre as pessoas comuns de Echigo, foi que se a observação destes preceitos era pré-requisito para a vida budista, então o Budismo poderia tornar-se sem significado na vida dos homens e mulheres comuns. O meio de vida dos pescadores e caçadores era destruir a vida; as atividades dos mercadores, quase inevitavelmente, implicavam numa certa dose de má fé, isto é, implicavam quase num tipo de roubo. O grupo de lavradores estava um pouco melhor. No sistema feudal da época de Shinran, os lavradores eram exatamente a força humana, que trabalhava os campos dos proprietários de terras. Era paralelamente considerado roubo se eles se apoderassem de uma parte da colheita para uso próprio. A situação tornava-se ainda pior, pelo fato de que o proprietário da terra era quase sempre um poderoso templo budista ou um santuário shintoísta: manter consigo algo deles era o equivalente a roubá-los.
Assim, o povo comum da época de Shinran era virtualmente forçado a violar os preceitos para sobreviver. Isso deve ter levado Shinran a reexaminar os valores do Budismo tradicional. Eram essas pessoas menos humanas por terem violado os preceitos budistas para sobreviver? As reflexões profundas de Shinran o levaram à conclusão de que, longe de serem menos humanos que outros, tais pessoas eram realmente o povo que vivia a vida como ela tinha que ser vivida, no mundo real. As classes mais abastadas – os protetores e os seguidores do Budismo tradicional que tinham as pessoas comuns com desprezo – eram as classes que estavam alienadas da realidade, pois viviam afastadas do trabalho opressivo das pessoas pobres. Se as pessoas comuns fossem excluídas da salvação, talvez fosse melhor abandonar o Budismo – pensou ele.
Portanto, Shinran percebeu que tal visão do Budismo era deturpada.

Com este reconhecimento, Shinran afirmou a absoluta igualdade de toda humanidade, dentro da Lei do Condicionamento Cármico, expressando esta compreensão na frase mencionada anteriormente: “Se nossas condições cármicas foram tais, nada há a ser feito”.
Essa profunda verdade, além da compreensão humana, é a fonte de origem da igualdade básica do homem. Quando despertamos para essa igualdade e para nossa verdadeira natureza como seres humanos, então as amarras e estruturas do sistema social são transformadas e nós nascemos para uma vida na qual todos os seres humanos e todos os seres vivos existem numa harmonia mutuamente sustentada. Qualquer Ensinamento que não esteja apto a guiar os seres humanos para esta realidade da vida, não pode ser chamado Budismo.
Shinran lidou em termos indubitáveis, com a questão da natureza humana e do legado do verdadeiro Budismo.A compreensão profunda de Shinran sobre esses assuntos é o que se encontra sob seu Ensinamento dos anos posteriores.
Com relação à natureza humana, uma coisa foi totalmente óbvia para Shinran: todos os seres humanos são seres profanos prisioneiros das suas paixões mundanas. O que Shinran quer dizer aqui é que as pessoas são simplesmente pessoas, nada mais, nada menos. Várias passagens do Tannisho esclarecem o que Shinran quer dizer.
A natureza do “homem comum” está determinada pela natureza das condições cármicas. Como mencionamos antes, a expressão “Se nossas condições cármicas foram tais ou quais, não há nada que possa ser feito”, indica que os fatos que surgem na nossa vida estão além do nosso controle ou entendimento.

Somos todos pessoas comuns. Isto significa que somos preenchidos por desejos que brotam da nossa ignorância. Nossas mentes exibem várias formas de paixões como frustração, raiva, ciúme e rancor. Esses sentimentos maus sempre nos atormentam. Eles nunca cessam, nem por um momento sequer, até morrermos.

Não temos escolha, a não ser viver de acordo com nossas condições cármicas. E ainda por causa delas, não temos escolha, a não ser experimentar o sofrimento contínuo.
Shinran considerou essa situação como o inevitável destino do homem. Tal é a sensível realidade da condição humana e é por isso que ele se auto-denominou “Néscio”. A tolice a qual Shinran se refere, não é falta de inteligência ou estupidez. Com a palavra “Néscio”, Shinran quer dizer que somos ignorantes, completamente ignorantes, ao olharmos para nós mesmos e para a nossa própria humanidade. Nada poderia ser mais tolo do que uma existência cega em relação a nós mesmos. No entanto, é exatamente esse eu néscio, o eu ao qual nada foi acrescentado ou retirado, que o Budismo se propõe a salvar.
Shinran queria simbolizar, com o uso do “Tonsurado” no seu nome, a percepção dessa verdade básica budista. Essa palavra toku significa o status de Shinran, de “nem monge, nem leigo”. Nesta frase “nem monge, nem leigo”, Shinran resumiu sua profunda convicção sobre a natureza do Budismo. “Nem monge” refere-se ao fato de que o caminho não é algo limitado somente a alguns poucos elitizados que vivem um determinado estilo de vida, isto é, os monges budistas. O caminho deve ser acessível a todos. “Nem leigo” significa que o homem não está espiritualmente satisfeito com uma vida sem significado, uma vida na qual ele não faz nada mais do que comer, dormir, morrer."



O caminho do discípulo

Takashi Hirose

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